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O “risco do risco’ no município de Guarulhos

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Desde o início do mapeamento do Observatório de Remoções, no ano de 2012,  são recorrentes as denúncias de ameaças de remoção motivadas por situações de risco. Ainda que se tratem de diversas formas de risco, como aqueles decorrentes da possibilidade de ocorrência de deslizamentos, enchentes ou eventos similares, aparecem entre as principais justificativas de ameaças de remoção. 

A falta de política habitacional e a omissão histórica do estado, aliado ao modelo capitalista de cidades, em que a terra é uma mercadoria para poucos, fez com que, ao longo dos anos, os piores locais para morar fossem reservado aos pobres. Não é difícil entender porque os movimentos populares afirmam que nos dias de hoje, a “favela é nova senzala”. O lugar dos pobres, ao longo de décadas, sempre foi a favela, o morro, o cortiço, as encostas, à beira dos rios e córregos nas cidades. Entretanto, terrenos e regiões, áreas ocupadas, que não tinham qualquer valor para  as construtoras e empresas passaram a ser de grande interesse. 

Conforme debatemos no último relatório de pesquisa do Observatório de Remoções, trata-se de um tema complexo e que precisa ser discutido com profundidade e detalhamento, já que o risco pode se configurar enquanto uma justificativa que legitima remoções rápidas e com poucas possibilidades de debate em relação a outras possibilidades de intervenção que não seja apenas a remoção. Como já dissemos acima, o argumento do risco pode até mesmo mascarar processos de reestruturação urbana em curso, que se sobrepõem a áreas vulneráveis. 

Nesse sentido, o caso do município de Guarulhos vem chamando atenção desde 2018, quando tomamos conhecimento de cerca de 97 Ações Civis Públicas promovidas pelo Ministério Público de Guarulhos que pede a remoção de “97 áreas de risco” apontadas por um levantamento do Serviço Geológico do Brasil – CPRM, entregue em 2014, dentre elas está o caso do Jardim Monte Alto, localizado no bairro Cabuçu. A área foi classificada como risco alto de solapamento de margem de córrego no levantamento realizado pela CPRM e é com base em laudo pericial que se utiliza desse mapeamento, que a ACP pede a remoção das famílias que vivem nas 27 casas incluídas no setor de risco.

Em apoio à comunidade local as equipes do LabGRis e LabJUTA elaboram um contra-laudo sobre o caso do Jardim Monte Alto. Em resumo, esse trabalho fez o resgate dos mapeamentos de risco já realizados na área, dos pontos de destaque do laudo que acompanha a ACP, o levantamento de dados do meio físico (ex. declividade, geologia, suscetibilidade), uma nova análise de risco e a indicação de medidas para requalificar a segurança local. A análise de risco foi feita a partir de uma visita técnica que ocorreu no dia 28 de setembro de 2020. A equipe foi acompanhada pelos moradores o que facilitou o diálogo sobre os principais problemas e possíveis soluções, particularmente aquelas mais simples e de custo mais baixo, que eles mesmos poderiam começar a adotar. Como resultado, qualificando os mapeamentos anteriores e utilizando fotos atualizadas por meio de drone (utilizado após ciência e permissão da comunidade), o contra-laudo definiu três setores de risco, com a remoção integral de uma residência e remoção parcial afetando duas residências. O novo laudo apontou obras estruturais necessárias para a qualificação da segurança da comunidade e que, portanto, devem ser executadas pelo poder público.  

Dessa forma, adotando-se uma metodologia mais detalhada, a partir das leituras já existentes, mas com uma escala de análise que considera ‘casa a casa’, foi possível reavaliar o número de remoções necessárias, que passou de 27 para apenas uma casa inteira e outras duas parcialmente.

Uma das questões problemáticas, é que, como o caso do Jardim Monte Alto, há outros 96 casos que deveriam ser analisados detalhadamente para que seja possível apontar quantas e quais casas de fato precisam ser removidas, sem perder de vista o fato de que a remoção desestrutura a vida dos atingidos e atingidas, impactando os mais variados aspectos da vida, como as relações sociais, saúde, educação e outras dimensões. Além disso, caso as remoções se concretizem, as famílias podem ficar expostas a outros riscos ainda maiores, considerando que não há nenhuma indicação em relação ao atendimento habitacional a ser oferecido a essas famílias. 

Soma-se a isso, o fato de estarmos em plena pandemia. Neste sentido, nota-se um descompasso/contradição no argumento relativo ao risco empregado para remoções como forma de proteção à vida, sobretudo em relação àquelas nas quais há outras possibilidades de intervenção, que não o desalojamento das famílias, visto que, expulsando as famílias de suas casas, em plena pandemia, a vida dos indivíduos sem um local de moradia poderia ficar ainda mais comprometida.

Já em outro caso que envolve cerca de 160 moradias localizadas no Cabuçu/Novo Recreio, após recurso interposto pela Defensoria Pública e pelo Município de Guarulhos  referente à Ação Civil Pública nº1028964-03.2017.8.26.0224, o Tribunal de Justiça  reconheceu, em dezembro de 2020, que a existência de edificações em áreas de preservação ambiental e com risco de desastre não são motivos, por si só, para se determinar o imediato deslocamento forçado das famílias e demolição das moradias.

Este precedente, que pode inclusive orientar outras decisões  e estudos sobre pedidos de remoção no Município de Guarulhos e tantos outros que possuem famílias vivendo sob risco de desastre, reconhece que o novo marco instituído pela Lei 13.465/17 e Lei 12.340/10 possibilita a (re)urbanização de territórios populares que se encontrem, total ou parcialmente, em situação de risco, regularizando moradias com base em estudos técnicos ambientais que irão nortear medidas de qualificação de segurança para a eliminação, correção ou administração dos riscos existentes.   

Experiências recentes vêm chamando a atenção para a importância da análise do risco na escala da casa, e o laudo realizado pela equipe composta LabGRis e LabJUTA da Universidade Federal do ABC, em conjunto com o acompanhamento realizado pelo Projeto Conflitos Fundiários do Instituto das Cidades, lideranças e representantes da comunidade, trazem à tona questões fundamentais para o tratamento dos processos de remoção justificados pela presença de risco, tanto em relação ao debate técnico-político dos instrumentos que baseiam as tomadas de decisão, quanto em relação aos espaços, quase inexistentes, de discussão de contra-propostas, contra-laudos ou outros tipos de ferramentas de resistência construídos a partir e em conjunto dos atingidos por processos de remoção.

No caso do Jardim Monte Alto, após a apresentação do contralaudo para a promotora responsável, Roberta Quaresma, foi proposto que o MP anexasse o documento à Ação Civil Pública, para que ele fosse apreciado. Dessa forma, com base neste contralaudo, a promotora pediu a suspensão da remoção das 27 famílias por 60 dias para que a situação fosse reavaliada e que haja possibilidade de construir um diálogo junto à Prefeitura de Guarulhos no sentido de viabilizar a permanência das famílias.

Cabe salientar que o trabalho foi realizado em janeiro de 2021 e, desde então, outros desdobramentos aconteceram, tanto no âmbito do judiciário, quanto do ponto de vista da dinâmica urbana e social compreendida pela vidas das famílias que vivem no Jardim Monte Alto. Por essa razão, há a necessidade de atualizar os últimos desdobramentos, e alimentar o diálogo junto ao poder público e o judiciário. É importante pontuar também que se faz necessário a construção de uma estrutura que possibilite um acompanhamento contínuo e aproximado junto às famílias, o que não foi possível neste caso, já que trata-se de uma intervenção que, infelizmente, não estava pautada num projeto em específico, que possibilitasse uma equipe de acompanhamento ao caso.

*Benedito Roberto Barbosa, Bruno Miragaia, Francisco Comaru e Talita Anzei Gonsales, são pesquisadores do LabJuta/UFABC e pós-graduandos no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território da UFABC e integram o Observatório de Remoções. Rodolfo Baesso Moura é pesquisador do LabGRis/UFABC e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território da UFABC. Giovana Bonilha Milano e Julia do Nascimento de Sá são pesquisadoras do Transborda/Instituto das Cidades/UNIFESP e compõem a equipe do Observatório de Remoções.