O conceito de comuns urbanos tem se consolidado como uma proposta frente aos modelos tradicionais de políticas públicas, desafiando as formas convencionais de gestão urbana e propondo alternativas baseadas na autonomia e na participação ativa das comunidades. No dia 10 de dezembro de 2024, a UFABC em São Bernardo do Campo recebeu o 2º Dia do Comum, organizado pelo LabJuta (Laboratório Justiça Territorial) e pelo eco.t (Grupo de Pesquisa em Ecologia Política e Território e Planejamento).
O ponto de partida foi a palestra de abertura da professora Iolanda Bianchi, da Universidad Autónoma de Barcelona, que refletiu sobre os comuns não apenas como formas de autogestão, mas como projetos políticos baseados na co-criação de novas formas de governança. Segundo ela, os comuns se materializam quando todos os atores envolvidos – comunidades, Estado, universidade, entre outros – participam da tomada de decisões em condições de igualdade. Nesse sentido, os comuns podem ser vistos como espaços de resistência e de criação de alternativas de sobrevivência que, ao mesmo tempo, desafiam o papel tradicional do Estado.
Bianchi compartilhou exemplos inspiradores de parcerias público-comunitárias em cidades europeias, como o centro cultural Can Batlló, em Barcelona, gerido comunitariamente com suporte público, e a remunicipalização da água em Nápoles, que criou estruturas de governança participativa. Essas experiências mostram que é possível garantir serviços públicos universais a partir de formas coletivas de organização, sem sobrecarregar as comunidades com os custos da reprodução social.
Na sequência, lideranças de movimentos populares de São Paulo trouxeram relatos marcantes sobre a potência transformadora da coletividade. Antônia Ferreira, do Movimento Sem Teto pela Reforma Urbana (MSTRU), falou sobre o protagonismo que emerge da participação popular: “O coletivo é extraordinário e transformador”. Ela destacou a importância de reconhecer o valor da vivência cotidiana de quem constrói a cidade, como na luta por moradia: “Eu escolhi a porta que está na minha casa. Eu sei como meu apartamento foi conquistado”.
Renato Ramos, do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), ressaltou que as pessoas não entram no movimento para “ser revolucionárias”, mas que é a própria vivência das necessidades cotidianas que leva à construção de uma organização baseada no afeto, na interdependência e na ação política. Para ele, é essencial planejar a vida coletiva e ocupar espaços institucionais – não apenas para pressionar o poder público, mas também para eleger representantes comprometidos com os movimentos. As falas reforçaram que os comuns urbanos não nascem apenas de uma ideia, mas de práticas concretas de sobrevivência, solidariedade e organização, que muitas vezes antecedem e ultrapassam as respostas estatais.
Miguel Vieira, professor da UFABC, apontou que, embora a universidade não seja um comum em si, ela pode se aproximar desse horizonte ao promover o intercâmbio de experiências e a construção coletiva do conhecimento. Iniciativas como a curricularização da extensão têm aproximado estudantes e comunidades, enquanto desafiam as universidades a reverem seus modos de funcionamento e relações com o território.
O debate também trouxe críticas ao distanciamento da academia das realidades estudadas, apontando o risco de uma postura hierárquica frente aos movimentos populares. Destacou-se a invisibilidade de comunidades, e suas experiências, e a importância da parceria com universidades para mudar essa situação, e particular pelo reconhecimento dos pesquisadores populares.
Além disso, o evento apresentou práticas concretas de fortalecimento dos comuns urbanos, como iniciativas de autogestão e uso de tecnologia, incluindo wi-fi gratuito em cozinhas solidárias e automação em hortas urbanas e uma proposta para um “Dicionário das Práticas Comuns”, inspirado no Dicionário das Favelas, que sistematiza saberes construídos em territórios populares.
A ideia de comuns urbanos se fortalece ao redor de um princípio político que articula uma pluralidade de lutas e resistências que se opõem tanto ao Estado quanto ao mercado. Ao contrário da lógica de propriedade privada, que se baseia no direito de excluir, os comuns não se configuram pelas dinâmicas tradicionais de exclusão e controle. Isso implica uma ruptura com os modelos de gestão tradicionais, criando uma alternativa radical à forma como as cidades e os recursos urbanos são geridos (Tonucci Filho; Magalhães, 2017). Eles funcionam como um meio de estabelecer um novo discurso político que articula e reconhece a potência das lutas existentes. Esse princípio se fortalece ao reunir as diversas práticas de resistência e alternativas radicais (Angelis; Stavrides, 2010), como demonstrado pelas iniciativas discutidas durante o evento.
Ainda assim deve-se reconhecer a natureza dinâmica, instável e frágil das relações que estão permeadas por tensões, conflitos e diversos processos de luta. Dentro desse contexto, uma dimensão crucial é a capacidade coletiva de produzir o comum, ou seja, a construção concreta e cooperativa que se desenvolve na interdependência com outros, sendo essa condição fundamental para a reprodução da vida nas cidades (Navarro, 2016).
O 2º Dia do Comum reforçou que os comuns urbanos são uma resposta política, coletiva e concreta às desigualdades urbanas. Neste sentido, a articulação entre movimentos, universidade e Estado é fundamental para sustentar essas experiências e transformá-las em referências para outras formas de fazer cidade. Os comuns não são apenas uma crítica às políticas públicas tradicionais – são um convite à sua reinvenção, com base na participação, no pertencimento e na produção compartilhada da vida urbana.
Textos citados:
ANGELIS, Massimo De; STAVRIDES, Stavros. On the Commons: A Public Interview with Massimo De Angelis and Stavros Stavrides. e-flux, 17. ed. 2010. Disponível em: <http://worker01.e-flux.com/pdf/article_8888150.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2022.
NAVARRO TRUJILLO, Mina Lorena. Hacer común contra la fragmentación en la ciudad: experiencias de autonomía urbana. 2016.
TONUCCI FILHO, João Bosco Moura; MAGALHÃES, Felipe Nunes Coelho. A metrópole entre o neoliberalismo e o comum: disputas e alternativas na produção contemporânea do espaço. Cadernos Metrópole, v. 19, n. 39, p. 433–454, 2017.
Leituras recomendadas:
BIANCHI, Iolanda. The Autonomy of Urban Commons’ Reproduction in Relation to the Local State: Between Material and Decision-Making Autonomy. PACO, v. 15, n. 2, p. 370–389, 2022.