Dentre as diversas faltas de infraestrutura nas comunidades e favelas, a questão do acesso à água transborda. Há um déficit no abastecimento de água adequado, em qualidade e quantidade, que impacta o dia a dia dos moradores e moradoras desses territórios de várias formas. Os dados oficiais sobre abastecimento de água privilegiam a porcentagem de cobertura da infraestrutura ou a população atendida, e não adentra na escala domiciliar, da casa, da vida cotidiana e nos impactos no corpo e no emocional das pessoas que passam dificuldades de acesso à água diariamente. Essa realidade mostra que mesmo o direito à água e seu acesso em quantidade, qualidade e regularidade para uso pessoal, doméstico e produtivo sendo um direito fundamental e universal, o exercício desse direito é dificultado pelas assimetrias que fundamentam a estrutura de estratificação social entre classes, gêneros, etnias e gerações.
Assim, abordar a questão do acesso à água apenas pela porcentagem de cobertura da rede de abastecimento e presença de infraestrutura não é suficiente. A água é mais que a sua materialidade líquida. Ela é produzida por interações hidrossociais entre as suas características físicas, o tipo de infraestrutura e tecnologia que garantem seu acesso e os fluxos de poder que mobilizam a sua gestão (Linton; Budds, 2014). Assim, a insegurança hídrica domiciliar, definida como a dificuldade de acessar e se beneficiar do acesso à água em quantidade e qualidade de forma economicamente viável (Jepson et al., 2017) é um processo que acontece principalmente na escala da casa e do corpo, e não da análise das redes de infraestrutura como predomina nos estudos do saneamento (Empinotti et al., 2023). A partir desse debate, é posto que a insegurança hídrica domiciliar vivenciada pelos moradores e moradoras de assentamentos precários urbanos é produto dos processos de produção do espaço urbano, que por sua vez é constituída por relações sociais e de poder (Empinotti et al., 2021), como as relações de gênero.
Nesse bojo que se insere a dissertação de mestrado “As relações de gênero em assentamentos precários diante da insegurança hídrica: uma análise feminista no planejamento territorial”, realizada pela pesquisadora Veridiana Godoy sob orientação da professora doutora Vanessa Empinotti, integrantes da equipe LabJuta e do grupo de pesquisa eco.t, no programa de Pós Graduação em Planejamento e Gestão do Território (PPGT-UFABC). O objetivo da dissertação foi analisar como a construção social de gênero distribui as responsabilidades pelas práticas de acesso à água em contexto de moradias precárias no espaço urbano, tendo como estudo de caso a comunidade Mangueirinha (nome fictício), localizada no extremo leste do município de São Paulo. Uma comunidade com vivências diversas de acesso, uso e gestão da água. Para este fim, partiu-se da perspectiva teórica e prática da Ecologia Política Feminista e sua contribuição para o planejamento territorial, aprofundando questões socioambientais do direito à água em escalas menos visíveis, como da casa e do corpo, entrelaçada com as relações de poder de gênero. Com a aplicação de uma metodologia feminista, o objeto de estudo do trabalho foram as experiências corporificadas que moradores e moradoras da comunidade Mangueirinha vivenciam frente a realidade de insegurança hídrica e as diversas estratégias que recorrem diariamente para superá-la. Tais experiências corporificadas são a materialização da violência de gênero, da distribuição desigual de infraestruturas no território urbano e da naturalização da insegurança hídrica no cotidiano.
Por exemplo, temos a vivência da moradora Jasmin (nome fictício), uma mulher preta de 23 anos, que estudou até a quinta série e faz bicos cuidando de crianças e cozinhando marmitas. Sua casa é um barraco de madeira de um cômodo suspenso por palafitas, feito pela ONG TETO, e o banheiro é de alvenaria construído por seu marido posteriormente, aos fundos. Moram no barraco 4 pessoas: Jasmin, seu marido de 26 anos que trabalha como ajudante de pedreiro, e as duas filhas de 8 e 2 anos de idade. Jasmin acessa água por poço, que já existia quando mudaram-se para essa casa. Ela quer construir uma fossa para despejar seu esgoto, pois preocupa-se com a contaminação da água do poço já que atualmente seu esgoto é conduzido por um cano até o córrego que passa na sua rua. O poço da casa da Jasmin não tem bomba, então ela puxa a água com balde na cordinha, e como não tem caixa d’água, ela leva o balde cheio de água para dentro de casa e enche os tambores da cozinha e do banheiro para utilizar a água no dia a dia. Mesmo tendo poço, uma fonte de água que não falta, não há uma rede hidráulica que capte a água e leve até dentro de casa, dificultando seu acesso à água e trazendo preocupações em relação à qualidade da água, contaminação e a saúde de suas filhas. A vivência de Jasmin mostra como seu corpo torna-se parte da infraestrutura de abastecimento de água. Como o poço não tem bomba, o corpo de Jasmin cumpre esse papel ao fazer força para trazer a água do fundo para a superfície. Depois Jasmin leva o balde cheio de água até dentro de casa, tornando-se cano, e enche os tambores. Jasmin relata que faz isso várias vezes seguidas durante o dia, para armazenar uma quantidade de água nos tambores suficiente para suas tarefas e assim “não precisar ficar toda hora lá puxando a água, porque cansa”, reclama Jasmin. Ela faz essa tarefa 10 vezes por dia e que não tem hora certa, quando ela precisa de água e não tem mais no tambor, ela vai até o poço e puxa com balde na cordinha. Jasmin sente muitas dores nas costas e seu braço toda noite fica dormente, que ela acredita ser por conta desse esforço diário, e também fica preocupada e tem medo de cair dentro do poço, que tem 4 metros de profundidade e ela não sabe nadar. A experiência corporificada de Jasmin demonstra como a insegurança hídrica domiciliar impacta no corpo e no emocional de quem a vivencia, materializando nas suas dores nas costas e braço a violência de gênero, da distribuição desigual de infraestruturas no território urbano e como a insegurança hídrica já foi naturalizada no cotidiano, sendo parte de sua rotina.
Ilustração de como o corpo de Jasmin torna-se parte da infraestrutura de abastecimento de água na sua moradia. Fonte: Veridiana Godoy, 2023.
A pesquisa analisou as vivências dos moradores e moradoras por meio de narrativas e desenhos que ilustram as atividades diárias que os moradores e moradoras da comunidade Mangueirinha executam para conseguir água. A aplicação desse método de pesquisa feminista desenvolve ideias de corporificação para entender e exemplificar as relações de poder existentes nas dinâmicas de insegurança hídrica domiciliar. Bebendo nessa fonte, os corpos dos moradores e moradoras podem ser entendidos como escala, território, identidade e, agora também, como infraestrutura. O corpo está sendo mobilizado como instrumento e ferramenta para superar a insegurança hídrica, gerando impacto direto no físico e no emocional das pessoas envolvidas. Os relatos sobre as experiências corporificadas abordam as dores nas costas, mãos calejadas, acidentes, muita exposição ao sol, medo de se machucar, dependência em relação a outras pessoas, brigas, jogos de poder. Essas são as implicações do uso do corpo como parte da infraestrutura, que são a materialização da falta de infraestrutura e desigualdade social do território, além da naturalização dessa realidade tão dolorida, por isso a corporificação do sujeito é uma importante chave de análise para entender as dinâmicas territoriais no espaço e tempo, revelando as relações de poder que se dão pelo caminho (Mountz, 2018). É importante ressaltar que o corpo que se torna parte da infraestrutura é o corpo do gênero feminino, pobre e preto, marcado pelas assimetrias sociais estruturantes da sociedade capitalista, racista e machista.
Portanto, a pesquisa traz uma visão crítica sobre o acesso à água em assentamentos precários urbanos, que abre espaço para o debate de como as relações sociais de gênero são produzidas em contexto de moradias precárias, como um comunidades, favelas e ocupações. A contribuição da pesquisa está na possibilidade de formular políticas públicas mais coerentes com a realidade da parcela da sociedade que vivencia a insegurança hídrica cotidianamente, bem como ampliar os estudos de gênero na área da Ecologia Política Urbana em diálogo com o campo do Planejamento Territorial, possibilitando um terreno fértil de mudança teórica e prática.
*Foto de capa é uma ilustração da entrada da comunidade Mangueirinha feita por Veridiana Godoy, 2023.
Para acesso da dissertação na íntegra: https://sucupira-legado.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=14658621