Quando pensamos no termo “metabolismo”, o que nos vêm em mente? Certamente pensamos em como nos alimentamos e como isso influencia nossa saúde e bem estar. Ter o metabolismo do nosso corpo funcionando de forma adequada é essencial para garantir que cumpramos todas as nossas tarefas do dia-a-dia, sejam estas associadas ao trabalho, ao lazer, à família e outras.
O metabolismo, nos termos da alimentação, se refere ao processo por meio do qual nossos corpos digerem os alimentos que consumimos, fazendo com que obtenhamos vitaminas, proteínas, minerais e energia para nosso desenvolvimento. A depender de determinantes biológicas ou de hábitos de consumo, o metabolismo de nossos corpos pode ser mais veloz, ou mais vagaroso, pode absorver mais ou menos nutrientes e ser mais ou menos eficiente em prover energia.
Longe de ser meramente de caráter biológico, o metabolismo também envolve aspectos culturais, políticos e sociais. De que maneira? A alimentação, nas sociedades humanas, depende da disponibilidade de alimentos e também de escolhas alimentares. Cada povo, de acordo com determinações culturais, econômicas e geográficas possui acesso diferenciado a alimentos como verduras, legumes, frutas, cereais e carnes. Da mesma maneira, estes fatores influenciam em diferentes formas de preparo dos alimentos e seu consumo. Atualmente, observamos também a emergência de determinados grupos que optam por se abster, por exemplo, do consumo de carnes e produtos de origem animal, dados os impactos socioambientais da pecuária. Outros grupos consomem apenas alimentos orgânicos, dados os efeitos deletérios dos agrotóxicos. E ainda, há grupos que, por falta de opção ou até mesmo de renda insuficiente, consomem produtos ultraprocessados e não nutritivos, impactando negativamente a saúde. Além disso, fatores como a religião também colocam-se como determinantes dos hábitos alimentares.
O termo metabolismo também ultrapassou sua origem biológica e passou a ser utilizado para se referir a processos sociais, como uma analogia às trocas de matéria de energia que o corpo faz com o ambiente. Mas afinal, como poderíamos pensar em um metabolismo das cidades?
Em 1965, o engenheiro norte-americano Abel Wolman, baseado em uma analogia aos organismos vivos, propôs que as cidades possuem também uma forma de metabolismo [1]. As cidades “alimentam-se” de fontes de matéria e energia para seu funcionamento. Assim como em nosso corpo há necessidade de comida, água e oxigênio, as cidades necessitam de materiais para a construção dos edifícios, ruas e avenidas, bem como necessita de água para o abastecimento, a limpeza urbana, a geração de energia, e outros. Assim como o sangue circula por nossas veias levando oxigênio para nossos órgãos, os trens, automóveis, bicicletas e mesmo os pedestres circulam pelas cidades carregando mercadorias, informações, e também alimentos para a população.
Ainda dentro de tal analogia, observamos que, assim como os organismos vivos, que após aproveitarem-se dos nutrientes provenientes da alimentação necessitam excretar o que não é útil, por meio da urina, das fezes e do suor, as cidades, em seus ciclos, também geram um conjunto de “excreções” marcadas pela geração de resíduos e efluentes. O funcionamento das indústrias e dos edifícios envolve o consumo de energia, além disso, o conjunto de pessoas que vive nas cidades também necessita de reposição diária de suas condições de vida, dadas pela compra de alimentos nos supermercados, o transporte até o local de trabalho e até mesmo os hábitos de higiene e limpeza.
Assim, analogamente a nossos corpos, as cidades podem ser compreendidas como grandes organismos que necessitam da entrada de elementos advindos da natureza para seu funcionamento, e que, após os ciclos de consumo, necessitam descartar os materiais que não foram úteis.
Se, como vimos, nosso metabolismo não é plenamente definido apenas de forma biológica, mas também depende de fatores culturais, econômicos e sociais, os processos que ocorrem nas cidades também não podem ser compreendidos apenas a partir de determinantes naturais. Pois, a construção da cidade, a urbanização, é um processo coletivo, uma produção social. Ao considerarmos o metabolismo urbano, estamos buscando salientar a importância da transformação da natureza no processo de urbanização, em outros termos, como define o geógrafo belga Erik Swyngedouw [2] um processo de urbanização da natureza mediado pelo modo de produção capitalista.
O citado geógrafo [2] defende que o metabolismo das cidades depende de fatores sociais, econômicos, culturais e, sobretudo, políticos. Quando pensamos nas redes de abastecimento de água, por exemplo, elas dependem de fatores como a legislação relativa à qualidade das águas, as normativas de proteção dos mananciais de abastecimento, os investimentos públicos e privados nas infraestruturas e como as políticas públicas garantem ou não o acesso dos moradores das cidades ao saneamento. As lutas de movimentos sociais, as disputas com grandes empresas que visam se apropriar de quantidades cada vez maiores de água para suas atividades e mesmo o acesso a fontes de água para o lazer indicam também como o metabolismo é moldado por conflitos e não definido apenas por fatores externos. Assim, a circulação da água é um exemplo de como o metabolismo das cidades não depende apenas de fatores naturais, mas sobretudo de fatores políticos.
Quando pensamos na saúde de nossos corpos, torna-se evidente que o que consumimos é essencial. O consumo excessivo de gorduras, açúcares e álcool, por exemplo, pode acarretar no desenvolvimento de doenças como o diabetes, o colesterol, mal funcionamento do coração, pulmão e fígado. Se para garantir a saúde de nossos corpos se faz essencial ter uma alimentação adequada, que garanta o bom desempenho de nosso metabolismo, quando pensamos nas cidades tais premissas colocam-se igualmente importantes.
O consumo excessivo de materiais extraídos da natureza e os altos índices de consumo de água e energia podem causar um mal funcionamento no metabolismo das cidades, gerando diversos problemas como o acúmulo de resíduos, a concentração excessiva de poluentes na atmosfera, ou mesmo desastres como as inundações e os deslizamentos.
Retomando a ideia de que os hábitos alimentares e, portanto, o metabolismo de nossos corpos não se define apenas pelo caráter biológico, mas também por fatores sociais, notamos que o acesso à uma alimentação saudável, a prática de exercícios físicos e outros fatores que melhoram o funcionamento do metabolismo e a saúde dependem também de fatores sociais. Alimentos orgânicos, por exemplo, mais saudáveis pela não utilização de agrotóxicos, são, em geral, ainda pouco acessíveis às populações de baixa renda, dado seu alto custo. Ao mesmo tempo, trabalhadores que vivem distantes de seu local de trabalho acabam gastando boa parte de seu dia nos deslocamentos, sem que haja tempo hábil para a prática de atividades físicas ou esportes.
No metabolismo das cidades observamos também estas diferenças. Se diante das dinâmicas sociais percebemos desigualdades no acesso aos alimentos, gerando possibilidades desiguais de desenvolver um metabolismo de forma saudável, no espaço urbano os riscos e benefícios também se dividem de forma díspar. Assim como, em geral, não possuem renda suficiente para acesso aos melhores hábitos alimentares e práticas cotidianas saudáveis, as populações de baixa renda também não possuem poder aquisitivo suficiente para viverem nos locais da cidade melhor dotados de infraestrutura, serviços e condições de moradia.
No metabolismo das cidades, em geral, as populações de maior renda conseguem obter acesso a localizações privilegiadas, mais próximas de seu local de trabalho, de espaços de lazer, de áreas verdes, e de infraestruturas que garantem a coleta adequada de resíduos, condições de segurança diante dos riscos geológicos e acesso à hospitais, escolas e outros equipamentos.
Tanto no campo quanto na cidade, o espaço é marcado pela divisão em propriedades que são acessadas somente mediante o pagamento de um preço. Assim, tal como os alimentos, produzidos, em geral, dentro de grandes extensões de propriedades privadas, a moradia também se torna uma mercadoria, dado seu monopólio por um proprietário. O metabolismo das cidades, então, acaba por depender de como essas casas-mercadoria serão mobilizadas no mercado, de como as políticas habitacionais são desenhadas e executadas, bem como da ação das prefeituras em termos de planejamento e regulação dos territórios.
Assim, diante das desigualdades históricas no acesso à terra e à moradia, o metabolismo das cidades acaba definindo uma distribuição injusta dos riscos e benefícios da urbanização. Episódios de chuvas intensas, por exemplo, acabam por afetar de forma mais pronunciada quem vive próximo a córregos e encostas, sendo estas famílias, em geral, aquelas de menor renda.
Contudo, se o metabolismo das cidades depende de fatores políticos, sociais e econômicos, transformações nestes metabolismo se colocam possíveis a partir de lutas por melhores condições de vida, por acesso à terra urbanizada em melhores condições e também à moradia. Assim como uma melhor alimentação pode ser alcançada por via da reforma agrária, na qual tem papel essencial movimentos como os Sem Terra, os quais produzem alimentos de qualidade a menor custo e beneficiam famílias empobrecidas, a luta pela moradia nas cidades também pode garantir condições mais justas diante dos processos do metabolismo.
Nesse sentido, refletir sobre o metabolismo urbano requer pensar as formas políticas sobre as quais nossas cidades são produzidas e apropriadas, enfatizando os processos de transformação ecológica implicados na urbanização. Pensar nos termos do metabolismo exige nosso compromisso em compreender as relações entre sociedade e natureza, entre o ambiente construído e os ciclos naturais. Tal compreensão nos permite pensar em outras formas possíveis de habitar a cidade, requerendo profundas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais.
Imagem: Rio Pinheiros, São Paulo, Brasil.
Fonte: Acervo de Bruno Avellar Alves de Lima. Outubro de 2022.
Na foto é possível perceber diversos elementos que definem o metabolismo urbano. O rio Pinheiros, já utilizado para geração de energia e para descarga de efluentes, hoje passa por processo de recuperação e despoluição voltado a melhoria na qualidade da água e valorização imobiliária a partir das avenidas marginais. Observamos uma rede de distribuição de energia, uma célula fotovoltaica para produção de energia limpa, a paisagem com altos prédios voltados a escritórios e moradias de alta renda e a vegetação do Parque Novo Pinheiro, às margens do rio. A região passou por processos de remoção de populações de baixa renda ao longo dos anos 1990 e 2000, a partir de projetos de renovação urbana orientados pela consolidação da região como centralidade financeira. Trata-se, assim, de uma paisagem que expressa uma complexidade de processos econômicos, sociais, políticos e culturais.
[1] WOLMAN, Abel. The metabolism of cities. Scientific American, v. 213, n. 3, p. 178-193, 1965.
[2] SWYNGEDOUW, Erik. A cidade como um híbrido: natureza, sociedade e “urbanização-ciborgue”. In ACSELRAD, H. (org). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. 2ed. pp.99-120. Ed. Lamparina, 2009.
Sobre os autores:
Bruno Avellar Alves de Lima é graduado em Gestão Ambiental pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). Mestre e Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (PROCAM-IEE-USP). Atualmente é bolsista de pós-doutorado junto ao Laboratório de Estudos e Projetos Urbanos e Regionais da Universidade Federal do ABC (LEPUR-UFABC), além de pesquisador associado ao Grupo de Estudos em Ecologia Política, Planejamento e Território do Laboratório de Justiça Territorial da mesma universidade (Eco.t-LABJUTA-UFABC).
Luciana Nicolau Ferrara é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde também obteve título de doutora em Arquitetura e Urbanismo. Atualmente é Professora Adjunta dos cursos de Bacharelado em Ciências Humanas (BCH-UFABC) e Planejamento Territorial (BPT-UFABC) na Universidade Federal do ABC, atuando também no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território (PGT-UFABC). É pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos e Projetos Urbanos e Regionais da UFABC (LEPUR-UFABC) e do Grupo de Estudos em Ecologia Política, Planejamento e Território do Laboratório de Justiça Territorial da mesma universidade (Eco.t-LABJUTA-UFABC).
Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelos financiamentos concedidos (Processos FAPESP n. 2019/ 13233-0 e n. 2022/ 13876-0). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.