O emaranhado de leis federais, estaduais e municipais, extenso, complexo, confuso, não é ensinado pelos pais nem pela escola básica. Nem poderia. Pode-se imaginar uma cena hipotética, caricata, de um pai ou professora lendo os diários oficiais para saber e ensinar as novas leis promulgadas ou modificadas naquele dia. Curioso lembrar que não se pode alegar o desconhecimento da lei para justificar seu descumprimento. Supõe-se que todos saibam todas as leis, mesmo sem qualquer tipo de ensino formal sobre elas, que se modificam a cada dia. Porém, o aprendizado da lei tem algo de intuitivo, de acúmulo de vivências, que se dá pelos hábitos e costumes de uma sociedade. Apesar da lei formalmente instituída, grupos diversos, em um mesmo país, assumem regras diversas que têm força de lei informal naquela comunidade específica. Algumas leis maiores são de conhecimento geral e são assumidas também de forma geral. O “não matarás”, além de ser um mandamento assimilado pelas várias igrejas e religiões, é uma regra legal que se conhece e se reconhece, desde criança. Porém, nada é simples e linear. Além do 007, outros grupos capturaram licença para matar. Os milicianos, quando seus interesses são contrariados, os militares quando consideram que há uma guerra, os policiais quando consideram que determinadas leis foram desobedecidas, o próprio Estado nos locais em que há pena de morte formalmente instituída. Até pouco tempo atrás no Brasil, alguns juízes inocentaram maridos traídos que cometeram feminicídio, acolhendo o argumento da legítima defesa da honra. Mesmo para essa lei-mandamento do “não matarás” o assunto é complexo: há quem defenda a pena de morte formal, outros consideram legítima defesa o que está sendo feito na Faixa de Gaza, ou ainda continuam a defender a legítima defesa da honra. Porém, em linhas gerais pode-se dizer que ainda causa espanto e alguma indignação o assassinato de um ser humano por outro ser humano. Pode-se considerar uma evolução que a tese de legítima defesa da honra esteja perdendo força, pelo menos no entendimento dos juízes!
O direito à vida, direito humano fundamental e lastro de vários outros, é um conceito mais abrangente do que o “não matarás”. Entre os vários direitos humanos reconhecidos, desde 2010 o Brasil assinou uma Resolução da ONU que incluiu como direito humano fundamental a água e o saneamento. Esse reconhecimento é mais novo e inovador do que o direito à vida, embora ambos sejam de mesma natureza. Talvez a isso se devam algumas situações inusitadas, como por exemplo, de algumas prestadoras de serviços de água e esgotamento sanitário que se negam a fornecer o serviço essencial para a vida e para a saúde em locais em que o bairro é informal e a situação fundiária não foi regularizada. Ou ainda o corte do fornecimento de água, sem o fornecimento do mínimo vital, para quem, por algum motivo, encontra-se impedido de pagar por ele. É como se a prestadora de serviços de água e esgotamento sanitário se inspirasse na fala de um ex-prefeito de uma capital brasileira: ao ser questionado por uma moradora em situação de risco, que afirmou não ser sua opção morar no local, o alcaide responde: “então morra…”
Para compreender melhor esses conceitos, tome-se uma situação hipotética, em que um acidentado chega com uma hemorragia em um pronto socorro. Trata-se de um paciente embriagado, que tem um emprego informal, vive num bairro informal não regularizado e que bateu seu carro, não licenciado, em um poste. Será que o médico plantonista pode não prestar socorro ao acidentado devido às várias irregularidades acumuladas pelo paciente? Em que medida essa situação guarda algum paralelo com a prestadora de serviço de água e esgotamento sanitário que se nega a prestar o serviço para um bairro que é irregular? Pode-se dizer que no primeiro caso trata-se de proteger o direito à vida e no segundo caso o direito à água e ao saneamento. Mas não resta dúvida que aqueles que acreditam e defendem o direito à vida, de forma mais abrangente, não podem aceitar que uma prestadora de serviços possa colocar em risco a saúde de uma família ou comunidade com este argumento. Se há algum impedimento para que as famílias permaneçam num local pode-se tomar providências legais para seu reassentamento, mas enquanto isto não se efetiva, não se pode aceitar uma situação de risco à saúde pelo não fornecimento dos serviços de água e esgotamento sanitário.
Este tem sido o entendimento de alguns juízes em decisões judiciais sobre a ligação ou não de água em bairros irregulares. O Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão de 2023, no Processo 1003777-50.2019.8.26.0441 deliberou que “o fornecimento de água é serviço essencial e, por essa razão, não pode ser negado pelo Poder Público, seja diretamente ou por meio de empresa concessionária. Em respeito ao princípio constitucional da dignidade humana, esse abastecimento deve ser garantido mesmo se for em área de preservação ambiental” (https://www.conjur.com.br/2023-dez-29/casa-em-area-de-preservacao-tem-direito-a-fornecimento-de-agua-decide-tj-sp/).
Em outro caso, em Santos, após negociações, com enfoque nos direitos humanos, em reuniões da Câmara Judicial instalada pela Juíza Fernanda Menna Pinto Peres, restou acordado que a Sabesp deverá instalar integralmente a rede de água potável e realizar os estudos para a rede de esgotamento sanitário na Vila dos Criadores, área com cerca de 1000 domicílios situada próximo ao porto de Santos, apesar de haver decisão transitada em julgado desde 2001 sobre o reassentamento dos moradores e recuperação ambiental da área. O caso foi assumido em 2021 pela juíza, que entendeu a complexidade do problema e inovou ao criar a câmara judicial, incluindo a associação dos moradores, técnicos, e os vários atores envolvidos no problema, para encontrar uma solução para o impasse que se arrastava há décadas. Como pode ser visto nas fotos adiante, a decisão vem na direção de preservar a saúde dos moradores da Vila dos Criadores, face à clara ameaça de saúde pública constituída pelas ligações precárias de água que eram encontradas no bairro, como pode ser visto nas fotos 1 e 2.
Caso semelhante ao da Vila dos Criadores em Santos encontra-se no Bairro Santa Luzia, no Distrito Federal, situado a apenas 15 km da Esplanada dos Ministérios de Brasília. Utiliza-se o argumento ambiental para justificar o adiamento da implantação das redes de infraestrutura e urbanização da área onde residem cerca de 5000 pessoas há algumas décadas. Encontra-se um quadro de grande risco à saúde pública associada à inexistência das redes oficiais de água e esgotos, que é agravado no contexto da epidemia de dengue que assola o Distrito Federal. A existência de mangueiras improvisadas com vazamentos, águas cinzas e eventualmente esgotos lançados nas ruas, pode ser observado nas fotos 3 a 5. Diversos estudos já realizados pelo Laboratório Periféricos, da UnB mostram a viabilidade de utilizar soluções baseadas na natureza no processo de urbanização da área, que melhorariam significativamente a segurança, quanto à saúde pública e equilíbrio ambiental.
Uma área desprovida de infraestrutura hídrica, como o Bairro Santa Luzia possui um maior potencial de tornar-se mais rápida e diretamente “sensível à água”, em um fenômeno chamado “leapfrogging”, se comparada a uma cidade com sua infraestrutura cinza tradicional já consolidada, sem que este processo passe por todas as etapas de desenvolvimento (https://thesis.anparq.org.br/revista-thesis/article/view/333). Vale destacar que o Bairro Santa Luzia está situado na mesma microbacia hidrográfica que o Bairro Estrutural e a Cidade do Automóvel, e as águas pluviais desses três bairros são direcionadas para o Parque Nacional. É evidente a necessidade de mudar o enfoque do manejo das águas, incluindo as obras de urbanização do Santa Luzia, para assegurar a proteção ambiental do parque, que tem uma importância significativa para o abastecimento de água no DF.
As decisões judiciais vão na mesma direção do que defenderam os movimentos globais de Justiça pela Água que se uniram em um manifesto encaminhado para a ONU, por ocasião do Fórum Mundial da Água em 2023. Nesse manifesto foi apontado que o acesso à água e ao saneamento são direitos humanos fundamentais, que a água é um bem comum e deve ser acessível a todos, sem discriminação, sob controle público e não uma mercadoria. É importante ressaltar a questão da injustiça climática como alterações no ciclo da água e impactos nos ecossistemas que incidem diretamente na qualidade e escassez hídrica
O Censo de 2022 trouxe algumas boas notícias com relação à melhoria da disponibilidade de redes de água e esgotamento sanitário no país. Com relação aos esgotos, os domicílios com esgotamento por rede coletora ou fossa séptica passaram de 59% de 2000, para 64% em 2010 e 76% em 2022. Os dados iluminam a necessidade de refletir sobre quem são os desatendidos por serviços básicos de água e esgotamento sanitário. Os dados do Censo recentemente divulgados confirmam que a grande deficiência está onde as pessoas têm pouco dinheiro: área rural, pequenos municípios, favelas e comunidades. Os dados da questão racial saltam aos olhos. Entre os pretos e pardos, que compõem pouco mais da metade da população brasileira, o percentual de pessoas sem acesso adequado ao esgoto chega a alarmantes 69%. Enquanto isso, entre os brancos, esse número é de 29%.
Persiste o paradoxo: tem-se divulgado que a privatização vai acelerar os resultados dos serviços de água e esgotamento sanitário, mas isso significa acreditar que as empresas privadas entrarão com sofreguidão nesses locais onde a instalação do serviço é considerada mau negócio na ótica dos resultados financeiros. Se parte das empresas estaduais, que estiveram excessivamente focadas nos resultados financeiros, entraram lentamente nesses locais, considera-se inacreditável que o quadro se altere positivamente com empresas privadas, nas quais o resultado financeiro é a motivação maior. As experiências brasileira e internacional de privatização desmentem totalmente essa crença.
Quando se fala em urbanização de favelas e comunidades pode-se avançar com soluções baseadas na natureza no processo de regularização fundiária que levem em consideração os processos urbanos e sociais existentes como o uso do saneamento ecológico a partir de tecnologias sociais, jardins de chuva potencializados nos jardins em frente às casas nas ruas (no caso do Bairro Santa Luzia existe até plantação de abóboras), o paisagismo produtivo, a valorização dos quintais mais verdes, hortas e árvores frutíferas. As redes de solidariedade e economia solidária são características exploradas no projeto Santa Luzia Resiste no planejamento territorial, parceria da Associação das Mulheres Poderosas de Santa Luzia e o Laboratório Periférico da UnB, fato que resultou no Prêmio Periferia Viva do Ministério das Cidades.
Mas o que se quer destacar na análise que aqui se apresenta é que, em qualquer contexto de prestação dos serviços de água e esgotamento sanitário, o direito à vida deve estar presente. Isso significa entender a água e o esgotamento sanitário como direitos humanos e forma de assegurar a saúde pública. Não se pode aceitar que uma prestadora de serviços de água e esgotamento sanitário se furte a atender aos que foram levados a viver em um assentamento informal, sem regularização fundiária. Esta postura agride os direitos dos cidadãos que ali residem, mas como as questões de saúde pública não têm muros, agride os direitos de todos nós.
Ricardo de Sousa Moretti é Professor visitante da UnB, integrante do ONDAS, da Rede BrCidades e do LabJuta- Laboratório de Justiça Territorial da UFABC.
Liza Maria Souza de Andrade é Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Brasília, coordenadora do Programa de Residência Multiprofissional CTS – Habitat, Agroecologia, Saúde, Ecossistêmica e Economia Solidária e do Laboratório Periféricos da UnB. Integrante do Ondas e do BrCidades.