Questões sobre drenagem e manejo de águas urbanas a partir da Audiência Pública de São Paulo “Enchentes em São Paulo e quais possíveis soluções?”

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No dia 16 de março de 2023 aconteceu na Câmara Municipal de São Paulo, a convite e chamado da Bancada Feminista e organização da Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente, a audiência pública entitulada ”Enchentes em São Paulo e quais possíveis soluções?”.

A audiência pública contou com a fala e participação de Marcos Monteiro – Secretário de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB); Antônio Fernando Pinheiro Pedro, Secretário Executivo de Mudanças Climáticas; Luciana Rodrigues Fagnoni Travassos, professora doutora da Universidade Federal do ABC; Anderson Kazuo doutor Nakano, professor do Instituto das Cidades, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); Renato Anelli, professor doutor da Universidade Presbiteriana Mackenzie; e, Ana Paula Koury, professora doutora da Universidade São Judas.

A abertura do evento foi realizada pela Silvia Ferraro, vereadora pelo mandato coletivo da Bancada Feminista, que iniciou sua fala dedicando a audiência ao pequeno Adrian Silva, menino preto periférico de nove anos levado em enxurrada no córrego Itaquera-Mirim, Guaianazes, em fevereiro. Neste início de ano foram mais de sete vidas perdidas por eventos de inundação, mas que poderiam ter sido evitadas, além dos inúmeros casos de perdas de bens materiais. Cabe destacar que esse número pode ser ainda maior, considerando a invisibilidade dos dados sobre os territórios populares, como as ocupações e favelas, alimentada pela estigmatização desses locais que são historicamente preteridos nas nossas cidades.

A vereadora também destacou a complexidade sobre o tema e como exige estudo e vontade política para solucioná-lo. Segundo a Defesa Civil, São Paulo reúne 180 mil moradias em situação de risco distribuídas em 480 áreas, com destaque que 51 mil moradias estão em riscos graves (R3 e R4). Ainda assim, São Paulo não possui em elaboração e prática o Plano Municipal de Redução de Riscos, sem apresentar avanços desde a promulgação do Plano Diretor de 2014. A vereadora aponta como possível encaminhamento que a comissão de Política Urbana, Metropolitana e de Meio Ambiente acompanhe a elaboração desse plano. 

Além dos eventos recentes e recorrentes de desastres causados por enchentes, inundações e deslizamentos, o atual momento de revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo também motivou o debate. Ainda que se trate de uma revisão para ajustes pontuais, que não deverá gerar grandes transformações no corpo da lei, o momento é oportuno para se refletir como o tema tem sido tratado no âmbito das políticas públicas municipais.

O secretário Monteiro (SIURB) destacou a previsão de 12 meses para a elaboração do Plano Municipal de Redução de Riscos, que, apesar de coordenado pela SIURB, será de caráter intersecretarial e com definição de 100 projetos de atuação em área de riscos R4 de modo preventivo.

A necessidade de morar e a deficiência do Estado em prover moradia digna, faz com que a população mais pobre tenha que se sujeitar a ocupar áreas impróprias, como em áreas inseguras do ponto de vista construtivo e ambientalmente sensíveis. Silvia lembra da importância da política de habitação e como esta tem sido insuficiente nas ações de provisão de habitação, urbanização e a limitação dos recursos fornecidos como auxílio aluguel, o que tem resultado em mais áreas inadequadas sendo ocupadas. Nesse sentido, fez falta na Audiência a presença do setor da habitação.

Em relação aos recursos aplicados, o Ministério Público fez um levantamento referente a aplicação orçamentária em ações de prevenção de enchentes para o período de 2014-2021. Foram aplicados cerca de 4 bilhões de reais de 7,5 bilhões de reais que haviam sido previstos para o período. Ou seja, foram investidos menos recursos em ações de prevenção e combate. Além do aspecto de execução orçamentária, ao fim de sua fala a vereadora levanta questões relevantes: as comunidades estão participando do planejamento das obras e ações? As soluções têm sido democratizadas e discutidas com transparência?

Já a apresentação inicial do secretário executivo de Mudanças Climáticas afirma que a “culpa” das enchentes nesse período é derivada do aumento no número de chuvas pelas mudanças climáticas. A fala citou exemplos de inundações e impactos do mundo todo como apoio argumentativo, buscando demonstrar que os impactos negativos afetam a todos de forma equânime. Ainda, o secretário destacou a presença de um sistema de monitoramento e sistema de alertas dito como eficiente em São Paulo, como principal resposta para o problema. 

Em relação às falas anteriores, é importante refletirmos criticamente sobre alguns conteúdos, visto que apesar das mudanças climáticas serem um fato cientificamente comprovado, que tem potencializado eventos extremos, os impactos são distribuídos desigualmente sobre a população mundial, sendo a mais afetada aquela de baixa renda e em maior situação de vulnerabilidade. O reconhecimento dessas desigualdades socioambientais é um ponto de partida para a construção de políticas públicas democráticas e que de fato atendam a população que mais precisa delas.

Além disso, desastres desse tipo ocorridos atualmente no país não são desastres naturais, pois, por um lado, decorrem da ação humana sobre o meio ambiente e da forma como os espaços são construídos, e por outro lado, apesar da quantidade da chuva existente, poderiam ser prevenidos, mitigados ou até mesmo, evitados. Canil et al. (2022) ressaltam a urgência de assumir, portanto, que os desastres não são naturais e o risco é socialmente construído – o que implica reconhecer, inclusive, que o próprio Estado participa dessa construção, seja por omissão, seja por realizar políticas insuficientes ou que engendram novas situações de risco.

Nesse contexto, considerando a perspectiva do risco construído socialmente, Nogueira e Canil (2018) afirmam a impossibilidade do enfrentamento dos riscos olhando somente para os fenômenos físicos. É preciso compreendermos, portanto, os fatores que causam as diversas vulnerabilidades, além da integração entre os atores da sociedade civil e dos governos para ocorrer uma gestão de risco efetiva. Ou seja, é de suma importância a mudança do atual modelo de planejamento e gestão territorial, de modo a priorizar os territórios populares mais vulneráveis e impactados. A apresentação do secretário de Infraestrutura Urbana e Obras trouxe os avanços que a prefeitura tem feito em relação aos Cadernos de Drenagem de São Paulo e também apresentou quais têm sido as ações planejadas e as ações emergenciais. Foi dado destaque para a parceria com FCTH-USP (Fundação Centro Tecnológico Hidráulica da Universidade de São Paulo) na elaboração dos cadernos de drenagem por bacia hidrográfica. Tais ações são instrumentos de planejamento relevantes, assim como é fundamental o município ter um eficiente sistema de monitoramento, porém, não são capazes por si só de solucionar o complexo problema.

Os Cadernos de Drenagem reúnem informações importantes sobre cada bacia hidrográfica. Hoje a SIURB tem finalizado e publicado cadernos referentes a metade das bacias que constituem o território do município de São Paulo. São dispostos dados sobre ocupação do território, vazão dos corpos d’água e canais, sobre quais os sistemas de drenagem estão implantados e quais são as soluções e alternativas planejadas. Nessas soluções estão previstas diversas alternativas para reduzir a mancha de alagamento e inundação da região – canalização, reservação, jardins de chuva etc. Os cadernos compilam as ações, mas não definem ao certo as priorizações das obras – o que é uma questão política.

O secretário reforçou que, com as mudanças climáticas, os eventos extremos têm sido mais recorrentes que os eventos previstos para o Tempo de Retorno de 100 anos – parâmetro que tem sido adotado para projetar as soluções de drenagem. Assim, estão mais frequentes as chuvas intensas de forma localizada em um curto período de tempo. 

A priorização de investimentos sobre as ações previstas nos cadernos procedem as etapas:

  1. Avaliação de projetos e propostas existentes (definição de ficha técnica por intervenção) 
  2. Definição dos critérios de priorização 
  3. Definição da escala de pontuação
  4. Avaliação multicritério
  5. Hierarquização das obras

Os critérios de priorização para atingir maior nota são: maior área de redução de mancha de alagamento, redução de alagamento em vias importantes, redução de alagamentos em áreas com edificações e equipamentos importantes, ganhos ambientais e ganhos hidráulicos. Os critérios resultantes em menor nota são: quantidade de famílias a reassentar, alto custo de solução, longo tempo de execução e licenciamento ambiental complexo.

Em detalhamento das ações da prefeitura vale destacar:

  • 16 reservatórios entregues desde 2017, sendo 3 dentro da gestão atual;
  • 6 reservatórios em obras e um reservatório com licitação aberta, cinco com licitação próxima;
  • Canalização e galerias entregues: Zavuvus, Anhanguera, Aricanduva, Ipiranga, Dois Irmãos;
  • Canalização e galerias em andamento: Água dos Brancos, São Luís, Lajeado, Rio Verde e Perus;
  • 216 ações emergenciais entre recuperação de margens de córregos, recuperação de galerias e muros de arrimo e taludes.

Apesar da previsão e execução de reservatórios, ainda se faz presente a lógica de canalização dos cursos d’água. Esteve presente, de modo frequente, na fala do secretário a expressão “escoamento”. Ainda é cultural a lógica de garantir e aumentar o escoamento, ao invés de se debater soluções de retenção de água de chuva na fonte. Mesmo quando se tem obras de reservatórios, estas dizem respeito a piscinões.

As falas dos especialistas foram assertivas e se complementam ao problematizar as apresentações institucionais dos dois secretários sobre questões chave, quando falamos de drenagem e soluções. Como primeira colocação crucial é reconhecer que a cidade de São Paulo é socialmente desigual, gerando condições desiguais de resiliência aos eventos de inundação e alagamento, e às mudanças climáticas. A urbanização paulistana é marcada pela segregação socioespacial, mas ressalta-se que as questões sociais e ambientais também devem ser racializadas, visto que a população negra, via de regra, está sob condições mais vulneráveis. 

O debate sobre drenagem urbana deve ser sobre a promoção da justiça socioambiental, ou seja, deve estar relacionada com ações de redução e erradicação das vulnerabilidades socioambientais.

Há um senso comum difícil de ser alterado, mas crucial de se saber que boa parte das pessoas não enxergam a raça ou classe nos eventos de inundação e alagamento. É reforçado também que os eventos são democráticos e afetam a todos de forma igual. Além de tal discurso se fazer presente nas apresentações institucionais, notou-se em comentários online durante a audiência pública. Conforme apontado pelo professor Nakano, as tragédias devem ser compreendidas como processos e não como eventos isolados. A partir de seu entendimento como processo passa-se a olhar causas, consequências e desdobramentos dos impactos. As mortes não se tratam somente dos casos de óbito, mas também, nas doenças por veiculação hídrica e questões de saúde mental. E mais uma vez, ressalta-se que os impactos não são distribuídos de forma uniforme e igual a todos.

Conforme aponta a professora Travassos em sua fala, a mudança do clima é real e implica em desafios quanto à drenagem, mas os problemas com drenagem são anteriores a piora da mudança do clima. Os problemas são resultantes da forma com que a cidade foi construída, das escolhas políticas feitas e que seguem sendo feitas, e da ausência de políticas públicas e infraestruturas, principalmente, em periferias – que deveriam ser priorizadas pelas políticas públicas.

Travassos e Nakano destacam a importância do debate sobre a priorização de investimentos: o que é feito, onde e para quem? Nessa questão, não é possível deixar passar batido que os critérios de priorização das obras de infraestrutura de drenagem em São Paulo sejam contraditórios. Dado que as áreas mais necessitadas e precárias, apresentam interface com habitação, demandam reassentamento, o qual é, contraditoriamente, um critério com um dos pesos mais altos para pontuar negativamente e perder posição nessa priorização.

Nakano traz uma colocação pertinente:o que acontece com a água depende do que fazemos com a terra. Mais uma vez reiterando que as condições urbanas que temos hoje foram resultados de escolhas políticas do passado e do presente. Tão como, aponta que as soluções, obras e tecnologias necessitam ser problematizadas e criticamente avaliadas. 

Travassos e Anelli destacam: as enchentes vieram para ficar. Ou seja, não é possível extinguir essa dinâmica hídrica, mas sim, passar a articulá-la com medidas e soluções que reduzam riscos, mitiguem impactos, mas que principalmente resolvam vulnerabilidades socioambientais – ponto cerne ao debate. 

Parte do processo envolve mudanças de visões sobre o assunto e avançar sobre a superação da descoordenação entre projetos setoriais, é necessário entender o território em sua complexidade e camadas.

Professor Anelli lembrou muito bem da função socioambiental da propriedade, conforme Estatuto da Cidade e Constituição Federal, e como é necessário fazê-la valer como uma das formas de se lidar com os problemas de drenagem. É repensar a forma de produção do espaço urbano, é reverter processos de impermeabilização, aumentar controle na fonte e promover medidas que possibilitem o convívio com as dinâmicas hídricas. 

A participação popular na audiência reforçou a necessidade de se olhar para as periferias, com falas sobre problemas e impactos vividos na prática, com perdas materiais e de vida, decorrentes dos problemas de drenagem. O público também pediu por soluções a esses problemas.

O que nos leva a questionar, qual seria a concepção ideal de drenagem? Para fechar as apresentações técnicas, a professora Koury apresentou o Lab Itaim Paulista, laboratório de soluções e governança de drenagem com atuação na Bacia do Ribeirão do Lajeado, extremo leste de São Paulo, que surgiu em 2015, a partir de movimento dos alunos da Universidade São Judas. Parte do grupo residia na região de Lajeado e sentia na pele a problemática. O Prof. Anelli participou propondo uma lógica de corredor ambiental urbano. Ana destaca que a maior parte da população da bacia é de pretos e pardos e com menor expectativa de vida em comparação a outros bairros centrais do município. Ressaltou em sua fala como a técnica tem um compromisso político e econômico. O grupo visou responder com a prática: Como mudar o modo de transformar e desenvolver a cidade? A atuação no território veio junto à Subprefeitura. Foram previstas a execução de soluções estruturais distribuídas pela bacia e soluções não estruturais de drenagem, com ações complementares. E mais do que soluções técnicas, o projeto desenvolveu outro componente crucial que é um modelo de governança, para mobilizar e construir as respostas junto e para quem vive no território. Além de avançar sobre outro paradigma para drenagem, baseado em reconhecer as potencialidades da natureza, distribuir soluções pela bacia, controle na fonte e avançar sobre como planejar tais soluções no território, como articular os atores. Sendo um exemplo de caminho possível e interessante.

Assim como esse projeto apresentado, o conhecimento sobre drenagem e manejo de águas em meio urbano avançou muito em termos científicos e práticos, com muitos exemplos no Brasil e internacionais. O desafio está em incorporar esse conhecimento de forma a adequá-lo às necessidades dos territórios populares, seja do ponto de vista infraestrutural, ambiental e social. 

Por fim, ressaltamos a importância da realização dessa Audiência Pública, e que o debate democrático é sempre salutar. 

*Acesse a gravação completa da audiência no link: https://www.youtube.com/live/NT79942FuRU?feature=share

Referências

CANIL, Katia.; MOURA, Rodolfo Baesso.; SULAIMAN, Samia; SILVA, Rafael Costa.; VIEIRA, João José; NOGUEIRA, Fernando Rocha.; LEITE, Marília de Azevedo. A construção social do risco e as diferentes escalas de análise. In: Samia Nascimento Sulaiman; Fernando Rocha Nogueira; Katia Canil; Rodolfo Baesso Moura; Marilia Azevedo Baptista Leite. (Org.). Caminhos participativos para gestão integrada de riscos e desastres: Um projeto de pesquisa e extensão universitária. 1ed.Santo Andre, SP: Editora UFABC, 2022, v. 1, p. 41-58.

NOGUEIRA, Fernando. Rocha.; CANIL, Kátia. Avanços e limitações: Reflexões sobre a gestão de risco. In: Samia Nascimento Sulaiman; Pedro Roberto Jacobi. (Org.). Melhor prevenir: Olhares e saberes para a redução de risco de desastre. 1ed.São Paulo: IEE-USP, 2018, v. 1, p. 49-56.

Observação: O período de retorno/tempo de retorno é o tempo médio em que um determinado evento natural é igualado ou superado. No caso da drenagem urbana, estamos falando da intensidade e duração de uma chuva. Representa a probabilidade de ocorrência de um evento em um dado período de tempo.