O Observatório de Remoções acompanha com preocupação a autorização dada ao Governo de São Paulo e à Prefeitura de São Sebastião para remover, mesmo que contra sua vontade, os moradores que vivem em áreas de risco no litoral norte paulista, região onde ocorreram deslizamentos de terra provocados por fortes chuvas na região entre sábado (18) e domingo (19).
Diante da possibilidade de ocorrência de mais deslizamentos, a decisão de evacuar áreas que possam estar sujeitas a novos desastres é uma medida necessária e tem como objetivo salvar vidas. Entretanto, esta decisão deixa uma série de indagações e pontos em aberto necessários para dar segurança e proteção às famílias.
Atendendo a um pedido da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e da Prefeitura de São Sebastião, a Justiça de Caraguatatuba, com aval do Ministério Público, concedeu, nesta quarta-feira (22), uma liminar autorizando a evacuação preventiva e provisória de pessoas em locais de risco. A liminar prevê que as famílias desabrigadas serão acomodadas em alojamentos provisórios administrados pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Social de São Sebastião. Ainda, estabelece que a Defesa Civil e as forças de segurança poderão atuar em Boiçucanga, Juquehy, Cambury, Barra do Sahy, Maresias, Paúba, Toque Toque Pequeno, Barra do Una, Barequeçaba, Varadouro, Itatinga, Olaria, Topolândia, Morro do Abrigo, Enseada e Jaraguá, além de outras localidades em que posteriormente sejam identificados riscos.
Realizamos um levantamento preliminar cruzando áreas que foram demarcadas em 2014, pelo Instituto Geológico (IG), como áreas de risco de escorregamento e o censo demográfico de 2010 (ambos evidentemente defasados), em que contabilizamos de cerca de 14 mil pessoas vivendo dentro ou no entorno imediato das áreas demarcadas com risco. Já são inclusive duas mil pessoas que estão desabrigadas desde o último domingo (19).
Nesse contexto, nos questionamos: quais famílias serão removidas? Onde serão abrigadas? Por quanto tempo? Em que condições? Há que se questionar também como será a vida dos evacuados, exigindo políticas não apenas habitacionais, mas de suporte à vida.
Também é preciso discutir e estabelecer com transparência qual será o procedimento de avaliação dos riscos existentes hoje na região, que sejam apresentados estudos sobre a necessidade de obras de intervenção e analisado com cautela as necessidades concretas e precisas de remoção, assim como as alternativas de moradia dos que serão reassentados.
Apenas a evacuação, sem medidas de curto, médio e longo prazo que terminem com uma solução habitacional adequada e segura, terminam repetindo o ciclo de ocupações de áreas ambientalmente sensíveis. Só na Vila Sahy, área onde ocorreram as maiores tragédias, moravam 2,5 mil pessoas de acordo com o censo demográfico de 2010. Esta população, se removida, onde irá morar?
Neste momento é fundamental diferenciar: “evacuação”, provisória e momentânea –como sendo a necessidade mais imediata de saída em um momento de concentração de chuvas para evitar outras mortes–; e “remoção”, que é a retirada definitiva do lugar. Remoções só devem ocorrer baseadas em laudos e planos de mitigação e prevenção de risco que definam de forma bem concreta se as famílias podem voltar e em quais condições. Se não podem, é fundamental que seja oferecido um atendimento habitacional definitivo, para não se repetir o ciclo de novas ocupações.
E é preciso ter políticas preventivas, desmontando o modelo perverso de urbanização do litoral norte marcado pela despossessão, desigualdade social e racismo ambiental que desenham quem será vítima de tragédias.
A imagem abaixo da Barra do Sahy demonstra a ocupação da faixa litorânea (e algumas encostas com belos panoramas) por casas e condomínios de veraneio para famílias de maior renda, que inclusive estão em situações de irregularidade ambiental e enfrentam há décadas processos na Justiça. Do outro lado da rodovia Rio-Santos, estão os territórios populares, mais densamente ocupados por uma população que migrou em busca de trabalho e oportunidades de prosperidade, de menor renda, que auto empreendeu assentamentos nas áreas disponíveis, sem urbanização nem infraestrutura prévia, exatamente como se reproduziram outros tantos territórios populares do país.
Estado e mercado selaram um pacto territorial: destinação total do acesso às melhores áreas para os produtos imobiliários caros e de luxo, e nenhuma política de acesso à terra e moradia adequada para quem não pode pagar, acompanhada de ações para a consolidação dos assentamentos a conta gotas.
Parar a máquina das tragédias exige ações para além do emergencial e das políticas reativas. É preciso também pensar em políticas de médio a longo prazo. A repetição de tragédias previsíveis como esta, desmonta a ideia de que são acidentais, pois poderiam ser evitadas. A culpa destes eventos não é da natureza ou de chuvas “assassinas”, apesar da crise climática global atual, que potencializa eventos extremos tal como o ocorrido. E tampouco das famílias mais pobres empurradas para situações territoriais nas quais precisam conviver com a insegurança fundiária e o risco socioambiental. São desastres socialmente construídos, ou seja, não naturais, que devem ser evitados e mitigados, o que não se fará sem ruptura com este modelo urbanístico e de gestão territorial.
Mudar este modelo exige uma ação coordenada entre todos os entes federativos, articulando-se em torno de políticas que dêem atendimento prioritário e subsidiado aos moradores de baixa renda dos municípios, além das políticas de prevenção e mitigação de risco. É preciso uma articulação interfederativa e intersetorial, que envolva a comunidade afetada, que é quem tem enfrentado estes desafios.
Como argumentou a Justiça de Caraguatatuba na decisão desta quarta (22), o direito à moradia não pode superar os direitos à vida, à saúde e à segurança, mas tampouco pode ser encoberto.
O Observatório de Remoções defende a elaboração de um plano participativo com os moradores para definir as intervenções na região. E, no caso de remoções inevitáveis para salvaguardar a vida das pessoas, elas devem ser amparadas por programas habitacionais. O provisório é insuficiente para interromper o ciclo de remoções que empurra os mais pobres para situações cada vez mais precárias de moradia. O emergencial deve ser garantido, mas isso não impede a Justiça de cobrar do Estado a sua responsabilidade pela política do deixar morrer.