Refugiados sob o temporal da especulação no litoral de São Paulo

Autores

*Texto originalmente postado no Le Monde Diplomatique – Brasil

https://diplomatique.org.br/refugiados-sob-o-temporal-da-especulacao-no-litoral-de-sao-paulo/

 

As cidades foram abandonadas aos interesses da especulação, às forças econômicas extrativistas, oportunistas e da pior especie, contribuindo para a produção de velhas e novas vítimas, sem teto e refugiados da especulação.

Refugiados da especulação. Esta também pode ser uma forma de denominar as famílias dos caseiros, faxineiras, garçons, vendedores ambulantes, trabalhadores da construção civil e trabalhadoras em geral que perdem suas casas quando chega o Carnaval com sua folia e suas chuvas previsíveis, anunciadas. Essa população é vitima de históricas injustiças territoriais e devem receber reparação.

Um velho professor do curso de engenharia civil nos anos 1990 costumava dizer que quando a estrutura de um edifício ruía, isso normalmente decorria de mais de uma causa. De fato, o experiente perito de estruturas, verificava, nos casos em que analisou, problemas decorrentes de projeto, de exceção, de uso e manutenção da edificação que, associados, geravam as condições para que um prédio ao longo de sua vida útil sofresse uma ruína total ou parcial.

A ideia dos múltiplos fatores determinantes dos processos que levam a determinados desfechos está presente em teorias da saúde pública, com a denominação de múltipla determinação do processo saúde-doença, algo que ouvimos repetidas vezes em análises dos sanitaristas por ocasião da pandemia de Covid-19.

No caso das tragédias que atingem as cidades litorâneas do estado de São Paulo, podemos também mencionar a multiplicidade de fatores para apontar as causas dos ocorridos, elencando: a intensidade das chuvas de verão, as mudanças climáticas, as moradia em locais inapropriados, a ausência de políticas e investimentos públicos preventivos, a “insuficiência ou inadequação do planejamento urbano”, o “crescimento desordenado” que segue determinadas lógicas e assim por diante.

Acontecimentos catastróficos desse tipo carregam a marca da multiplicidade de fatores que, com diferentes pesos, contribuem para trágicas perdas humanas e materiais no coração do Carnaval no litoral mais badalado do estado mais rico do país.

Cabe, entretanto, destacar uma causa estrutural e estruturante que está na base desses acontecimentos há décadas, permanecendo até hoje: o pesado jogo dos interesses imobiliários onipresente em todo litoral.

Esse jogo pesado – mais intensificado nos últimos quatro anos, sob a gestão federal da ultra direita –, mobiliza e pressiona setores da economia local e regional, governos, legisladores e até judiciário no sentido da valorização imobiliária permanente, sem tréguas, de modo a inviabilizar o direto à moradia segura e digna dentro do espaço seguro das cidades, como previsto na Constituição de 1988, na Lei Federal do Estatuto da Cidade e em inúmeros tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

A cada novo condomínio exclusivo em área nobre, próximo à praia, “pé na areia”, que resultou da expulsão direta ou indireta de famílias caiçaras de áreas filé-mignon; a cada ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) não demarcada no Plano Diretor em regiões bem localizadas da cidade para produção de moradia social; a cada família de trabalhadores que, por ausência de alternativa de moradia e lote seguro, é obrigada a residir no morro ou na proximidade do córrego, da-se mais um passo rumo à próxima tragédia.

Devemos reconhecer que as catástrofes deste feriado são fruto do acumulado de decisões políticas e econômicas que passam pelas elites locais, incluindo prefeitos, vereadores, além de governantes e gestores em nível estadual e federal.

Acompanhando os municípios litorâneos há mais de vinte anos e observando as políticas urbanas, habitacionais e de infraestrutura, incluindo as medidas associadas ao planejamento urbano, controle e indução do uso e ocupação do solo, percebemos que as cidades foram abandonadas aos interesses da especulação, às forças econômicas extrativistas, oportunistas e da pior especie, contribuindo para a produção de velhas e novas vítimas, sem teto e refugiados da especulação.

Certa vez, quando realizava pesquisa de doutorado no litoral paulista em 2002, entrevistava um integrante de uma imobiliária da região e com o mapa do município aberto, perguntei sobre os preços de lotes em diferentes bairros. Ao notar a menção repetida à loteamentos com terrenos de alto padrão, indaguei onde seria possível para uma família de classe trabalhadora comprar um lote “simples” e produzir sua moradia. Ao que ele me respondeu: “Ah meu amigo, aqui ninguém faz coisa pra pobre não”.

Resposta certeira que resume até hoje a charada das cidades brasileiras impactadas pelas chuvas e suas áreas de risco. As famílias de baixa renda (e também, parte das de classe média) não cabem nos territórios adequados e seguros das cidades, não por uma impossibilidade física e espacial. Mas porque as melhores localizações das cidades tornaram-se artigos de luxo, fetiche e commodities de uma especie de máquina de remoções.

Nos últimos anos, a habitação digna, segura e bem localizada se tornou uma mercadoria inalcançável à classe trabalhadora (contam-se milhões de precarizados), os territórios formam um tabuleiro como no velho jogo Banco Imobiliário disponível aos investimentos em produtos destinados a alguns tipos de perfis, com opções gourmet para variedade de gostos e interesses dos investidores que miram aluguel, Airbnb e outras alternativas.

Às famílias atingidas pelos desmoronamentos, inundações e aquelas que ainda continuarão, sem alternativas, teimando residir, nas áreas inadequadas e de risco pelos próximos anos (antevendo o pesadelo que as espera), não foi permitido morar em lugar seguro, dentro da cidade. Tiveram o seu direito à moradia interditado, o direito à cidade negado. Porque a especulação e o jogo imobiliário desregulado fala muito alto no nosso país e uma parte importante das elites urbanas vive (também) da renda imobiliária, do jogo especulativo e até do comércio ilegal de lotes clandestinos. Elas se beneficiam ainda mais com as boiadas urbanas abertas nos governos Temer e Bolsonaro.

Aos pobres restam, por enquanto, as favelas e ocupações, parte nos morros e áreas de inundação, além dos cortiços e das ruas. Contudo, isso pode e deve mudar. Sob os ares da reconstrução nacional esperamos que os governos trabalhem para liderar um amplo e importante processo de investimento nas periferias das cidades do país. Investimento em infraestrutura, serviços e equipamentos que deve ser acompanhado de medidas de enfrentamento da especulação, da super espoliação urbana, com alguma domesticação dos vorazes interesses e ganhos econômicos extrativistas oriundos das atividades imobiliárias locais em conexão com a financeirização globalizada.

Os interesses imobiliários têm que ser enfrentados concomitantemente ao investimentos maciços que as periferias têm que receber para que as tragédias deste Carnaval não se repitam nos próximos anos. Isso demandará políticas públicas e um planejamento urbano de tipo restaurativo com compromisso firme dos três níveis da federação, investimentos públicos subsidiados à luz das diretrizes da agenda da reforma urbana, com a devida participação popular.

O grito de Carnaval do litoral de São Paulo foi trágico e traz lições importantes aos que estão empenhados na reconstrução do país: é hora de agir decididamente pela inclusão de todas e todos, rumo à reconstrução das cidades com justiça territorial e climática, pois como reza a sabedoria popular: não é possível fazer omeletes, sem quebrar ovos.

 

Francisco Comarú é professor e coordenador do LabJuta da UFABC, pesquisador do CNPq, integrante da coordenação do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e colaborador da Rede BR Cidades.