Seminário eco.t #1: Urbanismo Reparativo

Praça da nascente, Pompeia, São Paulo. (Grupo Praça da Nascente/reprodução).
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No dia 10 de agosto ocorreu o primeiro seminário do Grupo de Pesquisa Ecologia Política, Planejamento e Território (eco.t) da UFABC com o pesquisador Nate Millington. Ele é Presidential Fellow em Estudos Urbanos no Departamento de Geografia e no Manchester Urban Institute da Universidade de Manchester. Sua investigação centra-se na política do ambiente urbano numa era de crise climática, com particular interesse na gestão da água e dos resíduos. Realizou pós-doutorado no Centro Africano para Cidades da Universidade da Cidade do Cabo e foi pesquisador visitante na Universidade de São Paulo, tendo realizado extensas pesquisas em São Paulo, Brasil e na África do Sul. Sua pesquisa atual se dedica a entender as relações entre crise climática, capital financeiro e infraestrutura em cidades marcadas por intensa desigualdade.

Em sua palestra, intitulada “Urbanismo Reparativo: a reutilização e ressignificação da infraestrutura na cidade desigual”, o pesquisador abordou a relação entre reparo, cuidado e manutenção das infraestruturas urbanas, compartilhando reflexões sobre formas de reparação e a relação do urbanismo com os trabalhos de reprodução social.

Millington fez uma exposição sobre seus estudos e reflexões recentes acerca do tema das infraestruturas existentes e como são cuidadas, adaptadas ou abandonadas em seus diferentes usos ao longo do tempo. O trabalho de Shannon Mattern é uma referência importante para essa pesquisa. No artigo “Manutenção e cuidado” (MATTERN, 2018), a autora aponta que devemos olhar para as formas de reorganização do mundo frente às constantes falhas das infraestruturas, percebendo o “trabalho cotidiano de manutenção, cuidado e reparo”. Um paradigma de reparo e de manutenção se contrapõe aos discursos de inovação e empreendedorismo: não pensar em criar coisas novas, mas no que fazer com o existente. Ela propõe, citando Steven Jackson (“Rethinking Repair”, 2014), que reflitamos sobre sociedade e tecnologia a partir das noções de “erosão, colapso e decadência, ao invés de novidade, crescimento e progresso” (JACKSON apud MATTERN, 2018). Assim, traz o foco para o trabalho e o conhecimento cotidianos e invisíveis. Estudar esse tema em si é entendido por Mattern como manutenção e cuidado, no sentido de cobrir essas lacunas teóricas.

Reparo implica, geralmente, em trabalhos invisibilizados e se relaciona com os debates sobre reprodução social fomentados pelas feministas marxistas. Assim, Millington trouxe um trecho de “Toward a Feminist Theory of Care”, de Tronto e Fisher (1990), em que investigam o tema do cuidado e sua definição: 

A nível mais geral, sugerimos que o cuidado (caring) seja visto como uma atividade das espécies, que inclui tudo o que fazemos para manter, continuar e reparar nosso ‘mundo’ de modo que possamos viver nele tão bem quanto for possível. Esse mundo inclui nossos corpos, nossa individualidade e nosso ambiente, tudo o que buscamos entrelaçar em uma complexa teia de sustentação da vida.

Há uma ampliação da noção de cuidado para além dos nossos corpos nessa definição, considerando o ambiente como objeto de cuidado também. E o debate que Millington traz enfoca as infraestruturas no ambiente urbano, que muitas vezes é pensado dissociado da “natureza” ou do que entendemos por ambiente.

Alejandro Coss-Corzo, sociólogo de infraestrutura, fala do reparo como o “trabalho de improvisação e adaptação impulsionado pela engenhosidade humana” (Coss-Corzo, 2021). Neste sentido, o reparo seria uma resposta ao colapso, às crises contínuas políticas, climática, financeiras, e questiona: quem está respondendo a essas múltiplas crises? Sugere, portanto, que sejam observadas as práticas geradas como resposta aos colapsos de forma crítica. 

Já a noção de reparação evoca outras abordagens, como a leitura da Black Radical Tradition sobre “reparação climática”, em que se responsabiliza o Norte Global pela crise climática e se demanda elaborar uma proposta de justiça reparativa frente aos danos que impactaram o Sul Global. Uma questão que o pesquisador destacou como relevante a ser feita é sobre quem será beneficiado com o reparo ou a reparação. Este último termo traz a ideia de uma contrapartida em resposta a um dano que não pode ser consertado, como curar uma ferida que não pode ser desfeita.

Importantes aspectos com relação à temporalidade das infraestruturas foram levantados. Por um lado, as infraestruturas são percebidas quando falham. Por outro lado, elas são muitas vezes planejadas para não durar para sempre, ou nem se pensa na sua arquitetura a longo prazo. Millington destaca o direito de reparar (movimento europeu right to repair), pela manutenção dos equipamentos e infraestruturas, opondo-se à obsolescência programada. Não ignora, no entanto, que se possa pensar no esforço de reparação como uma oportunidade de rever as infraestruturas e propor novas formas de produzir a cidade. No debate que seguiu a esta reflexão questionou-se quem decide o que deve ser reparado e o que deve ser destruído.

Neste sentido, em relação ao tema do trabalho, ele destaca o aspecto de atividade incessante, contínua e muitas vezes invisibilizada daqueles que reparam e mantêm, modificam e redirecionam os sistemas sociais e ecológicos que sustentam a vida coletiva. Indo além, questiona qual a diferença entre reparo cotidiano e intervenções ambientais, como intervenções pontuais feitas por cidadãos. Por exemplo, uma intervenção urbana em que foi feito um desenho de faixa de pedestre, ou o lago feito na praça da nascente, no bairro da Pompeia em São Paulo, resgatando na paisagem as águas que nascem no local.

Questiona ainda como é feito e planejado o trabalho de reparação de infraestrutura, tais como o desassoreamento dos rios, ou a manutenção das infraestruturas de detenção de água. Estas são obras enormes, mas sempre enfrentam problemas de manutenção. 

Outro exemplo é a reciclagem, trabalho desvalorizado, muitas vezes não remunerado e importante para reduzir a poluição ambiental nas escalas local e planetária. Em São Paulo, cooperativas de catadores de materiais recicláveis são remuneradas apenas pelo valor de venda do material coletado, mas não pelo serviço de coleta. Ele finalmente pontua a questão de como implementar políticas que apoiem quem trabalha com serviços de reparo, manutenção e cuidado.

Também é debatida a persistência ou não de infraestruturas polêmicas, como o Minhocão. Este é um espaço contraditório que envolve a população em situação de rua, o mercado imobiliário, moradores do entorno que lidam com a falta de espaços de lazer, o caráter histórico dessa obra rodoviarista feita no período da Ditadura Militar. A ocupação e ressignificação dessa infraestrutura está em constante debate nos últimos anos.

Millington convida a refletir sobre manutenção, cuidado e reparo como novos paradigmas para uma política urbana. Ele questiona como usar essas ideias para entender a cidade e pensar políticas e novas possibilidades, refletindo particularmente sobre as ocupações populares como forma de reparação e manutenção nas cidades desiguais. Nesse sentido, o termo ganha também um significado de reparação social, além da reparação física. A partir disso, propõe algumas reflexões, tais como em relação à escala (manutenção e reparo teriam como resolver todos os nossos problemas em escala global?); e sobre políticas de habitação (o que seria uma política de habitação construída sobre o reparo? Serão as ocupações e outras experiências urbanas do Sul Global formas de urbanismo reparativo?. Este é inclusive tema do filme lançado pelo Projeto City Occupied, do qual o pesquisador faz parte. Ao final, propôs pensar como criar e financiar infraestruturas mais justas e sustentáveis, tema que debateu em seu último artigo


(agradecemos a Luciana Ferrara pela revisão do texto)


referências 

BHAN, G. Notes on a Southern urban practice. Environment & Urbanization, [s. l.], p. 16, 2019.

COSS-CORZO, A. de. “Patchwork: Repair labor and the logic of infrastructure adaptation in Mexico City”, Environment and Planning D: Society and Space, [s. l.], v. 39, n. 2, p. 237–253, 2021.

FISHER, B.; TRONTO, J. C. Toward a Feminist Theory of Caring. In: ABEL, E.; NELSON, M. (org.). Circles of Care. Albany, NY: SUNY Press, 1990. p. 36–54.

MATTERN, S. “Maintenance and care”, Places Journal, Nov. 2018. Acessado em 15/11/2022. https://doi.org/10.22269/181120.

WEBBER, S.; NELSON, S.; MILLINGTON, N.; BRYANT, G.; BIGGER, P. “Financing Reparative Climate Infrastructures: Capital Switching, Repair, and Decommodification”, Antipode, [s. l.], v. 54, n. 3, p. 934–958, 2022.