Reconhecimento da cosmovisão dos povos originários: alteração da lei orgânica de Guajará-Mirim (RO) e a lei do Rio Komi-Memem (Rio Lage)

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Guajará-Mirim, município de Rondônia, repercurte vitória importante com a aprovação da lei que definiu que “Ficam reconhecidos os direitos intrínsecos do Rio Lage —Komi-Memen— como ente vivo e sujeito de direitos, e de todos os outros corpos d´água e seres vivos que nele existam naturalmente ou com quem ele se inter-relaciona, incluindo os seres humanos, na medida em que são inter-relacionados num sistema interconectado, integrado e interdependente.” (Lei Municipal 2.579/2023). É o primeiro município brasileiro a reconhecer o rio como sujeito de direito e um ente vivo. Ser sujeito de direito significa ser titular de direito, ou seja, ser entidade reconhecida que consegue impor sua vontade e preservar os seus interesses.

O Rio Lage, originalmente denominado pelos povos originários como Komi-Memem – água de frutas, na língua Wari’ Oro Mon -, deságua no Rio Madeira, que por sua vez abastece o rio Amazonas. O Rio Komi-Memem perpassa pelo território indígena Igarapé Lage, localizado em Guajará-Mirim (Rondônia). A imagem de satélite fala por si: por um lado, a área indígena com floresta amazônica conservada, por outro, a pressão antrópica não indígena fica nítida. As principais pressões que o rio e sua população interdependente sofrem são o avanço da fronteira da soja, o interesse de implantar hidrelétricas, a presença de madeireiros, garimpeiros e grileiros.

A lei 2.579/2023

Antes de falar da conquista, é importante entender o processo. O projeto de lei 007/2023, aprovado em Lei Municipal nº 2.579, promulgada em 28 de junho de 2023, foi elaborada a várias mãos, mas sob a liderança do vereador indígena Francisco Oro Waram. Francisco, gentilmente concedeu uma conversa, ele é parlamentar indígena residente em Igarapé Lage, da aldeia Lage Velho, é professor estadual concursado, formado em Gestão Escolar e Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia. Sua dissertação foi sobre a memória do povo Wari-Waram e o link de acesso está disponível ao fim deste artigo. Francisco foi convidado a fazer parte da política pelo parente indigena, também vereador de Guajará-Mirim. Foi o terceiro vereador mais votado.

Defende a pauta da educação escolar, além de estar como representante de 32 etnias indígenas da região, além dos interesses da população não-indígena do município em seu cargo de vereador. Ele começa me contando das dificuldades que os territórios indígenas passam para acessar as políticas públicas básicas – educação, saúde, infraestrutura, etc.

“As políticas públicas não chegam em nós indígenas. Mas a gente vota para vereador, para prefeito, para presidente, para deputado, mas as políticas públicas não chegam nas comunidades indígenas. Essa é a minha visão. E o que eu quero é educação, quero que os parentes estudem também. Não é fácil estudar, entrar nesse mundo da sociedade branca. Mas a gente precisa (…)” diz Francisco. O interesse de ocupar a “sociedade branca” se dá pela necessidade de ser ouvido para garantir seus direitos, lutar pela existência de seus modos de viver, sua cosmovisão, tão como, promover seus entendimentos tão importantes sobre a natureza. 

O primeiro passo dado foi o ajuste da Lei Orgânica do Município de Guajará-Mirim (lembrando que a lei orgânica é equivalente a Constituição, mas em escala local), incluindo responsabilidades ao Poder Executivo com para esses territórios e povos, que ficavam apagados e esquecidos fora do “urbano” e fora do “rural” e recebiam sempre como respostas “buscar a FUNAI”. Tão como abrir caminho com o reconhecimento dos rios e seus direitos.

Em seguida, com emenda, foi criada a Comissão dos Povos Originários – com participação de população indígena, mas não-indígena também, com união de sabedores tradicionais e ciência não indígena – onde eram discutidas as demandas, ações e políticas. Nesse espaço, houve o fortalecimento do debate tanto para os direitos dos humanos indigenas, como os direitos da natureza. A Comissão deu voz e deu representatividade. Com a presença dos dois vereadores indígenas foi possível mobilizar o debate para criar a lei específica para o Rio Komi-Memem.

Francisco me conta que na década de 1950 e 1960, as águas do rio eram limpas, mas que desde a década de 1980 espécies de peixes vem sumindo, a vida no rio vem sido comprometida. As atividades antrópicas desenvolvimentistas vem pressionando o território de Igarapé Lage e causando impactos sobre o rio e tudo que dele interdepende. Com apoio de especialistas jurídicos, como a consultoria Mapas, e apoiadores como artista Iremar Ferreira, o texto da lei foi redigido. Inspirando-se no caso da Nova Zelândia, do reconhecimento de direitos do rio Whanganu, por luta dos povos maoris. A lei possui visão ecocêntrica, entende que o direito do rio é dele por direito e não, por ser somente recurso a serviço de algo ou alguém. Ou seja, provoca uma mudança de visão sobre a natureza, dando enfoque à natureza para além da exploração humana.

Tanto em conversa com o vereador, como em live que aconteceu no instagram da Mapas nesta semana (link disponível ao fim da matéria), foi apontado o cuidado com a linguagem e o poder das palavras. A lei vigente quer provocar uma mudança de paradigma e comportamento saindo da noção do “desenvolvimento” e indo para o “envolvimento com ecossistema”, para compreensão que homem e natureza são um só.

Apontei que existem em níveis federal e locais legislação ambiental que abordam a preservação e conservação do meio ambiente, e questionei ao Francisco qual seria a explicação das diferenças entre a Lei do Rio Komi-Memem e tal legislação existente. Ou seja, o que poderia justificar a criação de uma lei local, como a aprovada. A primeira resposta foi que a motivação da criação de tal lei foi justamente o descumprimento das demais leis já existentes. Foi criar um reforço e um reconhecimento daquele rio em específico, levar ao poder legislativo, judiciário e executivo o conhecimento sobre tal rio, a importância de garantir a existência saudável dele. Mas também a outra diferença, é justamente reconhecer a cosmovisão indígena e traduzi-la para a população não indígena por via jurídica. Todo o processo em que Francisco esteve envolvido permitiu fortalecer o convencimento dos não indígenas para aprovação da lei.

Conforme a lei, o reconhecimento dos direitos intrínsecos da natureza e de sua participação nos processos institucionais de tomada de decisão e sistemas legais estão em sinergia com o  Programa Harmony With Nature da ONU por meio da Resolução da Assembleia Geral A/70/208. 

O principal instrumento previsto na lei é o Comitê Guardião, que deverá ser eleito a partir de indicação comprovada dos membros da comunidade, cuja composição prevista é:

I. Um membro da comunidade indígena do Igarapé Lage;

II. Um membro da comunidade de pescadores;

III. Um representante da organização Oro Wari;

IV. Uma representante das mulheres artesãs indígenas;

V. Um representante da Universidade Federal de Rondônia.

O Comitê fica responsável por elaborar um relatório anual, com contribuições do Poder Público, para informar à comunidade sobre a saúde e estado do Rio e planejamento das ações estratégicas de efetivação dos direitos reconhecidos na lei. Além da publicação do relatório, está prevista a discussão sobre o seu conteúdo com membros do Poder Executivo e Poder Legislativo na sede da Câmara Municipal, com realização de pelo menos duas audiências públicas, extraindo-se recomendações.

De acordo com a ONU, são 37 nações que incorporaram o tema do direito a natureza de modo oficial e institucional. Os principais exemplos internacionais foram o da Nova Zelândia, Índia, Equador, Peru, Bolívia e Chile. No Brasil, os principais casos, além de Guajará-Mirim, que trouxeram outro entendimento jurídico sobre a natureza foram Bonito e Paudalho (Pernambuco), Serro (Minas Gerais) e Florianópolis (Santa Catarina). No caso de Florianópolis, na lei orgânica em 2009 ficou reconhecido o direito da natureza à existência. Essa inclusão na lei orgânica permitiu dar voz à Lagoa da Conceição que, ao passar por contaminação, teve tal instrumento jurídico de direito usado como argumento de uma ação civil pública exigindo providências quanto ao vazamento de esgoto que ocorreu em 2021. Para fazer jus, foi requerido um modelo de governança e processos de atuação em defesa da saúde e existência da Lagoa da Conceição.

Comemoramos essa vitória do Rio Komi-Memem e torcemos para que outros rios sejam reconhecidos, tendo seus direitos garantidos.

Referências e links de interesse

https://mapas.org.br/cidade-em-rondonia-aprova-primeira-lei-que-garante-direitos-a-um-rio/

https://www.indexlaw.org/index.php/Socioambientalismo/article/view/6405

https://racismoambiental.net.br/2023/06/25/rio-Lage-de-rondonia-e-o-primeiro-a-ter-direitos-reconhecidos-por-lei/

https://g1.globo.com/ro/rondonia/natureza/amazonia/noticia/2023/06/23/rio-de-rondonia-e-o-primeiro-a-ter-direitos-reconhecidos-por-lei-entenda.ghtml

https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/mara-gama/2022/04/21/dia-da-terra-direitos-da-natureza-avancam-na-america-latina.htm

Dissertação de mestrado de Francisco Oro Waram

Memórias e saberes do povo Oro Waram Ka’ Piyim An Het Xine, Ka’ Kromikat Nexi, Ka’ Peho Nain Winaxi

WARAM. F. O. Memórias e saberes do povo Oro Waram Ka’ Piyim An Het Xine, Ka’ Kromikat Nexi, Ka’ Peho Nain Winaxi. 2019. 108 f. Dissertação (Mestrado em Geografia), Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGG), Fundação Universidade Federal de Rondônia (Unir), Porto Velho, 2019.

https://www.ri.unir.br/jspui/handle/123456789/3189

Live Mapas: https://www.instagram.com/p/CuC8F8Hui8G/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==

*Agradecimentos especiais a conversa cedida pelo vereador indígena Francisco Oro Waram.